Se, por um lado, existe uma grande população sem massa
crítica suficiente para fazer a diferença, que vive desinformada e, modo geral,
desinteressada da actualidade, não aprofundando temas nem compreendendo a sua
essência, do outro lado, temos elites socioculturais bem educadas, bem
informadas, capazes de traduzir a informação em conhecimento e, por isso, de
diagnosticar a situação. Capazes até de encontrar soluções lógicas, realistas,
possíveis e aplicáveis para o estado das coisas, mas que pouco fazem. Na maior
parte dos casos, não encontram expressão válida para as suas ideias no sistema
político vigente. Têm a perfeita consciência da quase impossibilidade de romper
através do partidarismo e da tecnocracia do domínio financeiro. Alguns
sujeitam-se – pois se não os consegues vencer… - e chamam-lhes “independentes”.
A ironia dessa independência…
Muitas destas elites não estão sequer para se aborrecer. Têm
o seu emprego, a sua vida. A cultura, para eles, não será tanto um modo de
expressão social mas mais um refúgio mental, uma forma de hedonismo.
Sem generalizar, temos uma definição de diferenciações
populacionais que se encontra bem patente no efeito de homogeneização dos
manifestantes. Em todas as manifestações que tive a oportunidade de ir, não vi
os habitantes dos bairros sociais, os beneficiários do RSI, os operários e
agricultores, os pobres reformados… em suma, os que mais prejuízo absoluto têm
com as políticas da austeridade. Também – salvo aquele abjecto grupo de
aposentados ricos que devia ter tido vergonha – não vi, logicamente, as classes abastadas. O
que vi foi muita classe média e média-baixa, gente informada e ideologicamente
de esquerda moderada a radical, muitos funcionários públicos e muitos jovens
desempregados. Para mim, isto demonstra que a informação, que chega a todos, ou
não chega nas melhores condições ou, mais provavelmente, não é interpretada da
mesma forma. Ou então, que os limites de tolerância são diferentes entre as
classes. Os desfavorecidos estão habituados a aguentar, aguentar. Creio que, no
dia em que as classes em privação socioeconómica deixarem de aguentar, aguentar
e saírem à rua, não vai haver governo que aguente.
Voltando ao tema central, o que é que nos afasta, então, do
desenvolvimento? Na minha opinião, um conjunto de coisas essenciais, entre as
quais destaco a educação e o sistema político e a lógica de interdependência
entre eles no âmbito democrático.
Em Portugal, a educação sempre foi uma enorme confusão. Com
a devida relativização histórica, creio que El-Rei D. Diniz terá feito mais
pela educação que 38 anos de Democracia. Houve uma transição muito trapalhona
entre o paradigma da “instrução” do Estado Novo, que era uma tremenda aberração
de conceito, em que criancinhas nas serranias transmontanas tinham que decorar
as linhas dos caminhos-de-ferro em Angola sem nunca terem visto um comboio, e a
“escola para todos” do pós-25 de Abril, em que, de repente, um sistema
educativo arcaico, subdimensionado e com falta de recursos materiais e,
principalmente, humanos, teve que acolher toda a população em idade escolar e
apresentar resultados. Para ser justo, estes resultados foram quase milagrosos,
pois passámos de um país com uma enorme taxa de analfabetismo para outro
completamente diferente num curtíssimo espaço de tempo. Mas isto é apenas
quantitativo. Em termos qualitativos, o nosso sistema educativo é uma manta de
retalhos feita de reformas atabalhoadas, sem tempo para validar, praticar e
avaliar as emanações teóricas de didactas e pedagogos de gabinete, que criam que
professores inventados a partir de engenheiros e arquitectos iriam estar
preparados para colocar em acção as suas ideias peregrinas. Depois, no ensino
público, os recursos humanos tronaram-se um protectorado sindical demasiado
poderoso para que houvesse uma real capacidade de mudança. Vejamos a polémica
avaliação de professores, que é, em conceito, uma necessidade vital para
garantir a qualidade do ensino, mas que se tornou num braço de ferro entre
gente demasiado teimosa para fazer qualquer tipo de cedência de parte a parte.
A então ministra da educação queria o 80, os sindicatos queriam o 8, e não
houve vontade de encontrar um meio- termo. A ministra não entendeu que aquele
modelo de avaliação iria acabar com um dos poucos factores de união que existem
entre a classe docente, que é a inexistência de relações hierárquicas. Os
sindicatos não perceberam que a avaliação poderia ser um factor de qualidade de
ensino e de promoção de educação.
Mais uma vez, sem generalizar, eu que já la estive, conheci
professores excelentes, capazes de fazer aquilo que é o essencial – criar espírito
crítico, relacionando o contexto curricular com o quotidiano e potenciando,
assim, a educação para a democracia e para a vida em sociedade. Também conheci
verdadeiros colectores de salário, que treparam sem mérito numa carreira criada
por eles e para eles, e que nada educavam. Estes são os protegidos dos
sindicatos. Não os contratados nem os desempregados. Aliás, o que são os
sindicalistas da educação senão professores que não sabem ensinar nem educar?
Não iria ficar em paz comigo mesmo se não dedicasse um
parágrafo às Novas Oportunidades, que na intenção e filosofia eram uma
iniciativa louvável e no design um programa muito bem concebido, mas que na
aplicabilidade deixou muito a desejar. Não houve – principalmente nas escolas
públicas – uma formação e consciencialização adequadas dos formadores e
professores. Talvez fruto disso, a opinião pública colou-lhe rótulos
facilitistas, muito bem aproveitados pela oposição de então, que hoje é governo
e legitima valores facilitistas aos seus próprios membros. As NO não resultaram
por causa da incompetência e impreparação de quem ficou incumbido de as
aplicar, e não porque fosse um mau programa.
De tudo isto, resulta que, em Portugal, nunca se educou para
a Democracia mas apenas para objectivos intermédios completamente
descontextualizados da realidade.
Quanto ao sistema político, as complicações são imensas.
Este sistema não tem praticamente nenhuma representatividade democrática,
portanto não tem legitimidade. É um sistema hipócrita, anacrónico e pernicioso,
que manipula o pouco eleitorado que tem, servindo-se – lá está – da sua falta
de educação para a Democracia.
Hipócrita porque os eleitos e nomeados para cargos políticos
não têm, na sua maioria, consciência de qualquer linha ideológica que
eventualmente sirva de base ou fachada para o partido a que pertencem. Qualquer
indivíduo elegível devia ser sujeito a intensiva formação em história e
filosofia políticas. E, assim sendo, mesmo depois de conhecedor, se continuasse
filiado num dado partido, certamente deixaria de ser hipócrita ou, na melhor
das hipóteses, ignorante, passando a mentiroso descarado. Não há muitas coisas piores do que agitar uma bandeira na qual não se
acredita.
Senão, vejamos: existe algo de social-democrata na história
ou na actualidade do PPD/PSD? Saberão eles o que é a social-democracia?
Praticam-na? Pelo que os governos
compostos por este partido têm demonstrado, a resposta é “não”! Existe,
sim, nas suas políticas, um claro domínio tecnocrata e financeiro, e de
social-democracia pouco ou nada.
E de socialista no PS? Nem vale a pena discutir. Nunca
houve, não há, nem haverá nada de verdadeiramente socialista no Partido
Socialista.
Algum deputado do PP saberá, eventualmente, que “popular”
vem de “povo”, e que o conceito de “povo” é tão difuso e ambíguo que nem sequer
cabe nas sociedades actuais? E, sendo ao mesmo tempo, CDS, ou seja,
democratas-cristãos, professam verdadeiramente os valores do cristianismo ou
apenas de catolicismo bafiento de sacristia? Mesmo que se digam “centristas”,
não estão eles numa direita conservadora, do mais essencial que existe em
termos de direita? Não há partido com mais problemas de identidade aparente que
o CDS/PP.
Mas ainda não acabei! Será que os deputados do PCP acreditam
mesmo que o marxismo-leninismo ainda pode fazer sentido na sociedade actual, ou
que ainda existe proletariado? E terão consciência que perderam os seus
melhores ideólogos por nunca terem aceitado uma renovação?
E o Bloco de Esquerda, em que esquerda está? Que facções
internas dominam? Existe ainda um conjunto de partidos de extrema-esquerda que
puxam cada um para seu lado, ou realmente, o PSR impôs a sua corrente trotskista?
E se assim for, saberão todos os bloquistas quem foi Trotsky?
É um sistema político anacrónico, pois todas estas
linhas ideológicas de fachada remontam ao final do séc. XIX e princípio do séc.
XX. É preciso dizer mais alguma coisa?