sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Ela move-se e nós somos primos do macaco

Há umas semanas atrás, um aluno daqueles como já não há muitos,veio-me pedir umas sugestões para um ciclo de debates multitemático, cujo tema era um muito pouco explícito "genes e agressividade". Satisfeito da vida por pensar que havia um interesse crescente sobre a base genética do comportamento, lá o fui orientando como pude, levando-o pelos meandros da evolução do comportamento social animal e humano, hormonas, neurotransmissores, selecção natural, princípios da optimização comportamental e o verdadeiro significado da agressividade, como um comportamento natural, extremamente útil pelo seu papel poupador de energia e evitador da violência e de confrontos agonísticos extremos, com mortos e feridos, que só têm desvantagens para qualquer um dos intervenientes. Bibliografei-o com passagens de teses de mestrado e livros de linguagem clara e simples sobre o espaço interpessoal, o território, a linguagem corporal, e observei-o encantado por conhecer uma nova realidade e poder atirar-se às feras devidamente documentado e plenamente consciente.

Ontem voltou com um misto de conformação e revolta. É que aqueles filhos de... Rousseau dos promotores e moderadores do debate achavam que a agressividade é uma coisa muito má que devia ser banida da sociedade e que os mauzões agressivos tinham um gene mau que os fazia assim. Como tal, os argumentos do meu pobre pupilo foram deitados por terra por um pressuposto falso, uma inconsciente e inocente suposição tácita tomada como verdade absoluta, e de nada lhe valeu toda a documentação que levava nem a sua corajosa capacidade de argumentação.

Não me restou muito mais que deixá-lo orgulhoso da sua derrota, comparando-o a um Galileu em pleno auto-de-fé, ou a um Darwin achincalhado pelos fixistas, e encorajei-o a continuar os seus estudos.

De facto, a história da ciência é pródiga neste tipo de acontecimentos. Aparece alguém a explicar a realidade de uma forma diferente e é logo vilipendiado por todos os outros, que se restringem ao conforto da teoria ortodoxa ou do dogma. Esses casos são tão mais graves quanto mais se avança nos paradigmas científicos. É que nem Galileu possuía modelos físicos e matemáticos pré-existentes que suportassem a explicação dos seus achados, nem Darwin tinha consigo a biologia molecular e a genética. Mas "no entanto ela move-se" e nós somos primos do macaco.

Galileu e Darwin tiveram que lutar contra dogmas. Hoje é epistemologicamente correcto dizer que nas ciências não existem verdades absolutas, ou como Kuhn explica, a ciência constrói-se com uma sucessão de paradigmas que explicam a realidade de forma sucessivamente diferente, e como tal, nenhum deles tem carácter definitivo. Daqui se depreende que a luta actual da ciência já não é contra a religião mas sim contra si própria, usando para tal essa coisa do método científico (que não é a sucessão hermética de acontecimentos que se aprendem nas aulas laboratoriais), e principalmente boas bases teóricas, trabalho experimental bem desenhado e resistente a erros e muita estatística que nos permita ter segurança nas associações que estão por detrás das hipóteses. Depois é só informar sobre as descobertas (papers, teses, livros, congressos, workshops...), aplicá-las na prática e seguir sistematicamente a sua aplicabilidade.

Se muitos cientistas claudicaram na apresentação de novos conhecimentos, o que o meu aluno foi defender não era, no entanto, nada de novo, mas sim algo teoricamente e experimentalmente por demais comprovado, e para o explicar, teve que se debater com algo muito mais perigoso, melindroso e arrogante que os dogmas: a ignorância. E perdeu...